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Chiron e a Dádiva da Dor

  • Foto do escritor: Sofia Lobo
    Sofia Lobo
  • há 1 dia
  • 4 min de leitura

Apesar de não ser a cena mais citada do filme de ficção científica Aniquilação (Alex Garland, 2018), foi a que permaneceu comigo anos após ter visto a produção. Nela, a personagem Josie, que tem histórico de automutilação e ideação suicida, em um momento de crise na narrativa após a morte de outra personagem, fala para Lena se referindo ao mistério da Área X.


“Ela quer combater isso, você quer entender. Eu não quero nenhuma dessas coisas.”


Essa fala talvez seja uma referência direta ao terceiro volume da trilogia literária que inspirou o longa, Aceitação (Jeff Vandermeer, 2014). Até hoje acredito que se trata de umas das melhores explicações para como me sinto em um lugar no qual constantemente me encontro na saúde mental.

Após a primeira sessão com a minha atual terapeuta, cerca de cinco anos atrás, eu me vi no elevador respirando fundo, encostada à parede de metal, pensando


“Eu não vou voltar”


Ela havia me ouvido por quarenta e cinco minutos antes de me apontar algo tão óbvio que havia passado despercebido nas minhas observações pessoais. Algumas sessões seguintes, ela me fez uma pergunta que mudou a minha vida e me jogou em uma crise que durou quase nove semanas.

Chiron era filho de Chronos e da ninfa Filira. Abandonado ao nascimento, foi adotado por Apolo, com quem aprendeu sobre arte, filosofia e medicina. Conhecido por sua sabedoria, foi professor de diversos heróis dos antigos mitos. Até ser atingido por uma flecha vestida com um veneno de seu próprio preparo e dada ao seu pupilo. Por sua condição de imortal, a flecha não foi suficiente para matá-lo, mas causou-lhe dores constantes e incuráveis, apesar de seus esforços.

Por diversas vezes, vi a condição de terapeuta comparada ao mito de Chiron, o curador ferido. Já ouvi alguém me dizer que a minha profissão deve ser muito difícil, sentar diante do sofrimento do outro, ouvir tantas coisas pesadas. Eu concordo. Ouvir como um terapeuta é uma tarefa dolorosa.

Os espaços de saúde mental estão tomados pelo discurso da busca pela cura. A cura de uma suposta ferida, de uma criança, de um trauma dissolvido em definições cada vez mais abrangentes. Promessas de milagres em poucas semanas, a libertação de toda angústia.

Heidegger diz que a nossa angústia é condicional à nossa condição de existente. Quando nos vemos diante do abismo da mortalidade, da incontrolável passagem do tempo, como um pai autoritário, da liberdade tão limitada de nossas escolhas e o peso das nossas renúncias.

Na sua peça “Entre Quatro Paredes”, Sarte escreve quatro personagens presos em uma sala pela eternidade como um cenário do Inferno. No clímax da narrativa, a porta se abre e é dada a escolha a um personagem. Sair do Inferno ou ficar para sempre, uma escolha óbvia.

Sísifo é condenado a rolar uma pedra ao topo de uma montanha todos os dias para vê-la despencar todo entardecer. Camus disse que assim é a vida, o paradoxo da rotina e do fracasso. Tentar rolar a pedra montanha acima todos os dias na esperança que hoje ela permanecerá.

Cura vem do latim cura que significa cuidado. Embora hoje curar esteja mais próximo de eliminar. Algo está curado quando está resolvido, quando não me acomete mais. Há o problema e há a cura, há a angústia e há a cura.

A ironia é que só existe uma forma de se resolver a condição de existente.

Ouvir como um terapeuta é uma atividade dolorosa porque precisa ser. Ouvir como um terapeuta é habitar um espaço de dor, é permitir que a ferida sangre, é compreender a impossibilidade da cura. O terapeuta não busca a cura, mas o atravessamento.

Chiron em sua sabedoria ao se ver ferido pela primeira vez sem conseguir se curar, preso à sua condição de imortal, tocou a mortalidade e implorou pela morte aos deuses. A flecha o atingira na perna e roubara parte de seu movimento, uma ferida pequena. A compreensão da dor o tornou mortal.

Eu não sou uma masoquista. Não acho que viver é sofrer, mas viver é também sofrer. A dor é potencial verdade, um caminho de acesso. Negá-la tem como custo a própria existência, ainda que seja inevitável. A dor escolhe os lugares mais diversos para se fazer presente.

Eu não quero viver apesar da dor, mas por causa dela. Porque é atravessando a dor que me percebo vivendo. Não acho justo escantear a dor a um lugar de escárnio, ela vale tanto quanto o prazer. Vivo pelos dois, por causa dos dois, porque o prazer e a dor são manifestações da minha condição.

Acontece que a dor requer silêncio, às vezes requer grito. Requer contemplação e violência. Requer vulnerabilidade e verdade. Requer tempo e nós não temos muito tempo. Para “ganhar tempo” nos valemos da cura em desespero. Qualquer coisa que nos permita afogar a dor para continuar nos movendo. Para continuarmos produzindo.

Porém quando vemos a flecha, não é mais possível ignorá-la. Algumas dores nos acompanharão até a morte. Há de cuidarmos do lugar delas. Elas encontrarão o próprio caminho até a nossa casa. Cabe a nós abrirmos a porta e termos um tempo para visitas.

No filme Blade Runner (Ridley Scott, 1982) vemos uma máquina se tornar humana através da aceitação da sua dor e vemos um humano se perceber como ferramenta através dessa mesma dor. A dor é revolucionária. A dor é um ultraje. Um atentado ao preço do tempo que ainda nos resta. Permitir a si mesmo dar esse tempo à própria dor é se tornar impagável.

A dor requer o outro. Requer um olhar de reconhecimento. Quando vemos outra dor abrimos a porta para a nossa. A dor é um vínculo de dedos entrelaçados e silêncios compartilhados. Aprendemos a sofrer sozinhos e esquecemos que somos criaturas comunitárias, nossa existência é intrínseca ao mundo.

Eu me recuso a me curar. Eu me recuso a trancar à chave esse quarto onde habita a minha dor. Eu quero viver o absurdo desse momento por teimosia. Sempre fui um tanto melancólica ou apenas sensível. Escolhi o amor e a gentileza como meu caminho, e da mesma forma escolhi atravessar as dores.

Na semana seguinte à minha primeira sessão de terapia, eu cheguei dez minutos adiantada na sala de espera.

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