Essa Noite Sonhei que Comia Cacos de Vidro
- Sofia Lobo
- há 18 horas
- 2 min de leitura

Essa noite eu tive um sonho esquisito. Sonhei que comia cacos de vidro.
Era um hábito, eu tinha consciência dos cacos que já habitavam dentro de mim. Tinha medo do mal que me fariam algum dia, mesmo que eu ainda fosse assintomática.
Eu escondia esse hábito me dobrando em mim sozinha no meu quarto. Devorava meu par de óculos escuros quebrados, mastigava e despedaçava as lentes para que virassem areia de praia sobre minha língua. Meus óculos não me arranhavam a boca, nem a garganta na descida. Não havia dor, apenas a expectativa da fatalidade.
Meu hábito perdia o sentido enquanto eu segurava metade de um óculos quebrado. Aquilo me mataria e eu não quero morrer. Havia muitos cacos presos em meu estômago, esperando sua oportunidade.
Caminhei até o banheiro e vomitei na pia os cacos da minha própria perspectiva. Eles arranharam a minha garganta na sua saída, recusaram-se a ir embora do lar que eu os havia dado. Não tinha sangue, mas tinha dor, sobre ela uma camada de alívio. A liberdade dos cacos era minha também.
O quadro mais emblemático das Pinturas Negras de Francisco Goya é Saturno Devorando Um Filho. Também é uma das minhas pinturas preferidas. Admiro o seu mistério e a hostilidade crua da imagem. O quadro foi nomeado depois da morte de Goya, ele havia apenas deixado a imagem na sala da sua casa. Não a vejo como Saturno, mas como uma figura sem nome. Um par de olhos preso na inevitabilidade da crueldade.
Uma grande amiga costuma dizer que “quer comer um sanduíche de caco de vidro” quando as coisas dão errado. Devorar a frustração na possibilidade da dor dar-lhe um lugar. Minha mãe fala sobre “engolir sapos” quando precisa se sacrificar em relações hostis. Devorar o desconforto na possibilidade de dissolvê-lo em esquecimento. Eu já permiti palavras ficarem presas à minha garganta, dentes de parasita que seguem em apenas uma direção.
A saída me doeu, ainda que limpa de sangue, não era a carne que me feria. A violência de um vômito provocado na esperança do alívio e no fim a percepção que nem foi tão difícil. A dor na minha garganta era a dor de acordar sem voz após gritar muito ou falar alto. Eu não gosto de falar alto. Não gosto de falar sem ter certeza. Não gosto de falar quando não é a minha vez. Não gosto de falar quando não sinto que é cabido. Não gosto de falar quando sei que não vou ser ouvida.
Então virei terapeuta e escritora.
Eu devorei as lentes estilhaçadas dos meus velhos óculos, aqueles que quebraram semana passada. Usei-os por anos, estão com o grau errado, tenho mais 0.25 de astigmatismo no olho direito agora. Eles não estavam mais me ajudando em muita coisa, mas gostava de como eu ficava com eles. Eram redondos e isso me lembra meu pai que sempre gostou de usar lentes redondas. Preciso de óculos novos, não sei se com lentes redondas. Espero poder contar com a corda no meu tornozelo para me ajudar a enxergar.
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